PEQUENA HISTORIA DA ALMA PURITANA

Estar socada em casa, vendo as fotos e relatos de criancinhas separadas dos pais na fronteira, e sendo colocadas em galpões no deserto texano, onde a temperatura nesta época do ano é por volta de 41 graus, diariamente, corta o coração. Parece um manual de “como criar um ser que odeia”.

Nosso procurador geral, que criou a lei, semana passada, a pedido de nosso líder máximo, citou a Bíblia e o apóstolo Paulo, para defender a barbárie. E o fez com sorriso nos lábios.VEJA AQUI

Os democratas uivam que “isto não somos nós, isto não é América”.

Discordo.

 Isso é a America Puritana e Pelegrina, desde que foi fundada.

E é tudo culpa dos bloody British.

Ao chegar aqui, tive a sorte, logo de cara, de ser empregada no MHMR de Tarrant County, e tive 2 chefes, chefinho (do departamento), que me ensinou muito da história do Texas e chefe máximo, de todo o departamento de psiquiatria, irmanados que fomos, por termos vindo ambos de Duke e pela paixão compartilhada por história. Lembro com muita saudade de nossas conversas, depois das grandes palestras mensais, onde aprendi que o povo vai jantando enquanto o palestrante vai palestrando, coisa que nunca consegui. Como resultado, comíamos depois de tudo encerrado, com a criatura se divertindo a respeito das “sensibilidades européias”e me dando aulas fantásticas da historia Americana.

Aconteceu assim:

Por centenas de anos, a Inglaterra foi homogênea na prática do catolicismo. Certo, alguns reis ingleses, principalmente Rei João, cairam em desgraça com o papa, mas mesmo assim, a Inquisição nunca pegou firme por lá, embora de quando em vez, um ou outro herético fosse queimado em fogueira, com o caracteristico zelo e entusiamo católico.

As idéias protestantes começaram a entrar no país no início do século 16, quando começou gritaria maior do que o costume contras os excessos de riqueza e carnalidade dos padres e seus monastérios. O povo começou a pedir que a Bíblia fosse traduzida para o Inglês, de formas que o povão, que não falava latim, pudesse ler, e também, no mais estereotípico dos estereotipos ingleses, começaram a querer maneiras de falar a seu Deus de formas mais simples que as ostentadas pelos católicos.

Mas, a quebra com a Igreja católica só se deu mesmo por motivos tremendamente comezinhos, nada a ver com divindades: Henrique VIII, apaixonado por Ana Bolena, queria o divórcio de sua catolicissima esposa Caterina de Aragão. Papa disse não.

Henrique encheu-se e formou a Igreja Anglicana. Notem que Henrique não tinha qualquer idéia teologica ou de fé, ou de mudanças profundas, ele só queria casar com Ana, coisa que fez, tanto que até hoje, na Igreja Anglicana, os ritos e as rouparia são que tal que nem na Igreja católica, sendo a única diferença , na Anglicana os padres casam e em vez do papa, o chefe supremo é o rei/rainha da Inglaterra.


Como soi acontecer, teve muito protestante purista que não gostou nada da idéia de não ter havido nenhuma radical mudança nas coisas, assim durante todo o restante dos governos dos Tudor, desenvolveu-se tremenda competição pela supremacia, entre os novos protestantes e os católicos, com mudanças de poder de um lado a outro, e rios de sangue de permeio, e aquilo que a Inquisição não tinha feito, o velho “Meu Deus é melhor que o seu”, fez.

Como se não bastasse, havia também discordância entre os própios protestantes, a respeito da direção da Reforma.

Novo grupo foi se formando, grupo esse que foi apelidado de “Puritanos”, os quais se opuseram virulentamente aos elaborados rituais da Igreja Católica, que acreditavam, continuava por demais prevalente na Igreja Anglicana, querendo eliminar qualquer prática religiosa que pudesse lembrar o Catolicismo.

Leve em consideração que a crença básica dos puritanos é a predestinação, ou seja, que Deus escolhe cada ser humano desde o nascimento, para salvação ou condenação. Só Deus sabe o destino de cada pessoa .Obviamente isto está diametralmente oposto ao conceito de lívre arbítrio da Igreja Católica 

Os puritanos eram adeptos da teologia da reforma de Calvino, e suas crenças atribuíam grande importância à pregação, à supremacia de Deus, à crença literal nas escrituras e à adoração de maneira simples, sem os rituais, cruzes e adornos ornamentados da igreja católica,que eles tanto desprezavam.

Naturalmente, essa crença na supremacia de Deus os colocou em rota de colisão com os governantes du jour que, tendo conseguido se livrar do jugo do papa, não estavam muito interessados em ter que moderar seu domínio e controle  para agradar a divindade.

Mesmo assim, o rei Jaime I tentou encontrar uma maneira de acomodar as coisas, traduzindo a Bíblia para o inglês, o que não adiantou muito, com os ânimo se escaldando.


A coisa estourou lá por 1629, quando o rei Charles I dissolveu o Parlamento, coisa que foi interpretada pelos puritanos como um ato de hostilidade contra suas práticas religiosas e daí muitos deles decidiram vir para a America, de formas a desenvolver suas próprias comunidades, baseadas em suas crenças.


A maioria desses migrantes eram comerciantes ou artesãos qualificados, em vez de agricultores, o que complicou muito a vida deles por aqui, já que foram parar em Massachusetts, onde não havia cidades, ou comércio ou qualquer necessidade de artesãos. Não bastasse, as brigas internas a respeito de “puridade religiosa”começaram quase tão logo ao desembarque do Mayflower, com o povo se espalhando e formando novas colonias, e essa é uma outra interessantissima história que terá que ficar para outra vez. Como também não tinham qualquer idéia de compromisso e/ ou compaixão para com quem não expressasse exatamente as mesmas crenças, cometeram a primeira defenestrada, mandando os Quakers para Barbados, instituindo uma lei que os definia como heréticos e também chegados ao satanismo.


O que foi acontecendo na Inglaterra no interim, é de uma confusão kafkiana. Durante o tempo de Cromwell, muitos membros da Igreja Anglicana se sentiram perseguidos, também vieram para a América, e foram para a Virgínia e, os católicos por ninguém tolerados, se reespalharam pela Europa. A coisa foi tão feia que até o James II foi forçado fora do trono porque tinha virado católico quando de seu casamento com Maria de Modena. O parlamento Ingles passou uma lei que proibia futuros monarcas de serem católicos ou de casarem com uma católica.

Mas, voltando à America, mais da metade dos ingleses morreu durante o primeiro inverno por aqui, devido à má mutrição e pessimas condições habitacionais, totalmente inadequadas para o inverno terrível que é lá em cima.


Por sorte deles (ingleses), na região viviam os índios Wampanoag que, segundo antropologistas lá estiveram por cerca de 10.000 anos antes da chegada dos imigrantes ilegais, os quais lhes ensinaram a plantar milho e a caçar perus selvagens e ursos, e assim, durante o outono de 1621, ingleses e indios dividiram a colheita, o que deu início à festa de Thanksgiving. O perfeito relacionamento entre ingleses e índios foi deteriorando rápidinho, devido à mania dos primeiros de ir se espalhando nas terras dos segundos, capturar uns vários para vender como escravos na Inglaterra e práticamente destruir todo o povo Pawtuxet com a peste.


E começou a Guerra Americo Índia, que é o nome coletivo dado aos vários conflitos armados entre colonos europeus e os índios daqui, compreendendo o período entre 1622 e 1924.


É de consenso geral que, o pico do horror foi o que chamam de “Trail of Tears” (trilha das lágrimas), em 1838 quando, devido à descoberta de ouro na Georgia, 16.543 pessoas da tribo Cherokee foram forçadamente removidas de suas terras, para o Oeste, resultando na morte de mais da metade deles.

Interessante notar que, o presidente da América na época, Andrew Jackson, recusou-se a respeitar o mandato da Suprema Corte que proibiu a Georgia de se meter na terra dos Cherokees, é o herói de nosso atual presidente.

E aí claro, temos a escravidão, que começou no período colonial e durou até depois da Guerra de Seceção (1961-1865). E depois disso, precisaram deslocar tropas federais para impedirem a reescravização, que foi imposta sob forma de impedimento ao voto, restrição de movimento, divisão em transporte público e em escolas, que só terminou (pelo menos na lei), em 1966 com Lyndon B. Johnson.


Após a Guerra Mexicano-Americana (1846–1848), os EUA anexaram grande parte da atual região do sudoeste do México. Os mexicanos que aí residiam, viram a coisa preta. Estima-se que pelo menos 597 mexicanos foram linchados entre 1848 e 1928 (estimativa conservadora devido pobreza de registros). Foram linchados a uma taxa de 27,4 por 100.000 habitantes, estatística inferior apenas à da comunidade afro-americana durante o mesmo período, que sofreu em média 37,1 por 100.000 habitantes.


Durante a Grande Depressão, o governo dos EUA patrocinou um programa de repatriamento mexicano que tinha como objetivo incentivar os imigrantes mexicanos a retornarem voluntariamente ao México, embora  muitos tenham sido removidos à força No todo, cerca de um milhão de pessoas foram deportadas, das quais, 60%  eram cidadãos americanos.

No século 19, surgiu o preconceito anti-irlandês, que era em parte um sentimento anti-católico, parcialmente anti-irlandês como uma etnia.
O Partido Nativo Americano, comumente chamado de movimento Sabe de Nada (partido politico só para protestantes), trabalhou ativamente para limitar a influência dos católicos irlandeses e outros imigrantes, refletindo assim nativismo e sentimento anti-católico. Sinais de: "Não há necessidade de aplicar se for irlandês" eram comuns. E qualquer semelhança com o modern GOP, não é mera coincidência.


Também no século 19, por causa da escassez de mão-de-obra nas indústrias de mineração e nas ferrovias, imigrantes chineses chegaram com força. Eram desprezados porque aceitavam os empregos por menos da metade dos salários pagos aos brancos, e obviamente, foram chamados de Perigo Amarelo, e causadores do fim da civilização ocidental. Foi passada a Lei de Exclusão Chinesa (1882), que proibiu a imigração chinesa para os USA.


Em 1907, imigrantes japoneses, não afetados pela Lei de Exclusão, começaram a entrar nos Estados Unidos, preenchendo a escassez de mão-de-obra que antes era preenchida pelos trabalhadores chineses. Esse influxo também levou à discriminação e foi bloqueado pelo presidente Theodore Roosevelt.


Durante a Segunda Guerra Mundial, a República da China foi uma aliada dos Estados Unidos, e o governo federal elogiou a resistência dos chineses contra o Japão na Segunda Guerra Sino-Japonesa, tentando reduzir o sentimento anti-chinês. Em 1943, a Lei Magnuson foi aprovada pelo Congresso, revogando a Lei de Exclusão Chinesa e reabrindo a imigração chinesa. No entanto, na época, os Estados Unidos estavam lutando ativamente contra o Império do Japão, que era um membro do Eixo. O racismo anti-japonês, que aumentou após o ataque a Pearl Harbor, foi tacitamente incentivado pelo governo, que usou insultos como "japa" em cartazes de propaganda e até internou nipo-americanos, citando possíveis ameaças à segurança. Esse preconceito continuou por algum tempo após a guerra, e o racismo asiático afetou a política dos EUA nas guerras da Coréia e do Vietnã, embora os asiáticos estivessem em ambos os lados dessas guerras, assim como na Segunda Guerra Mundial. Alguns historiadores alegam que um clima de racismo, com regras não oficiais como a "mera regra do gook", permitiu que civis sul-vietnamitas fossem tratados como menos que humanos e crimes de guerra se tornaram comuns.

Em 1923, a Suprema Corte Americana determinou que os hindus não eram "pessoas brancas" e, portanto,  inabilitados racialmente para a cidadania naturalizada.
Foi só com a Lei de Imigração e Nacionalidade (1965), que se abriu  a entrada nos EUA de imigrantes que não os tradicionais grupos do norte da Europa e germânicos e, como resultado, alterou de forma significativa e não intencional o mix demográfico nos EUA .

Alterou o mix mas não os sentimentos.


O século XX viu a discriminação contra imigrantes do sul e leste da Europa (notavelmente italianos e poloneses), parte por causa do sentimento anti-católico (tal como a discriminação contra irlandeses) e parcialmente por causa do “nordismo”, que considerava todos os imigrantes não-germânicos. como racialmente inferiores.

“As leis biológicas nos dizem que certas pessoas divergentes não se misturam. Os nórdicos se propagam com sucesso. Com outras raças, o resultado mostra deterioração em ambos os lados. "Futuro presidente dos EUA, Calvin Coolidge, 1921.


E, é claro, não podemos esquecer o anti semitismo dos séculos 19 e 20, tão bem reativado em recente eventos, e que creio ter sido brilhantemente definido por Cornel West, numa entrevista no Museu do Holocausto:

Mesmo que alguns judeus acreditem que são brancos, acho que foram enganados. Acho que o anti-semitismo provou ser uma força poderosa em quase todos os lugares da civilização ocidental onde o cristianismo tem uma presença. E assim, mesmo como cristão, eu digo continuamente aos meus irmãos e irmãs judeus: não acredite no hiper sobre sua assimilação e integração em escala total no mainstream. Leva apenas um ou dois eventos para que um certo tipo de sensibilidade anti-semita surja em lugares que o surpreendem. Mas estou completamente convencido de que a América não é a terra prometida para irmãos e irmãs judeus. Muitos irmãos judeus dizem: "Não, isso não é verdade. Finalmente ..." Sim, eles disseram isso em Alexandria. Você disse isso na Alemanha de Weimar.”

E, é claro, o amplo, geral e irrestrito ódio aos mussulmanos, no século 21.

E acabo de ouvir que os USA retiraram-se da Comissão dos Direitos Humanos da ONU.


E me ponho a pensar no Gattopardo, o fime, onde Fabrizio, principe de Salina, contempla o desembarque de Garibaldi na Sicilia, e todas as mudanças no contrato social que isso representa. Entende a própia irrelevância, perde-se em devaneios, e mesmo assim, permanece conservador quanto à sua posição.
Sente-se a dor do príncipe à medida que a modernidade se aproxima, mas ele nunca expressa isso. Sua frase sussurada "Se quisermos que as coisas continuem como estão, as coisas terão que mudar", define o momento histórico.

E ao lembrar disso, também entendo como é tão mais fácil ver o mundo em branco e preto, nós contra eles, puros contra impuros. Entendo, mas não preciso aceitar. E entre Fabrizio e Calvino, cá estamos no novo tão velho Puritanismo sem compaixão, sem nuances, sem alegria, carregando ódio em nome da fé.

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