VOCÊ SOFRE DO TRANSTORNO: NÃO 24 HORAS DO DESPERTAR E SONO?

Desde que comecei minha carreira na área médica, padeço de profundo horror de propaganda de remédios. Qualquer um, até vitaminas e/ou suplementos. Mas nunca meu problema se tornou tão agudo quanto aqui na America, the beautiful. Começou logo de minha chegada, quando, ao descobrir que não entendia o inglês falado pelos texanos, eis que me pus a assistir TV o máximo possivel, para treinar o ouvido. Nada resolveu quanto ao entendimento da lingua esquisita falada aqui, posto que na TV, as pessoas no noticiario falam sem sotaque, inglês totalmente compreensível, incomparavel a seja lá o que era que os nativos murmuravam. Por outro lado, me deu uma saudade enorme das propagandas brasileiras (sim, sou fanática por propagandas, acho que são mais interessantes que o programa em si, e nunca vou esquecer o primeiro outdoor que vi do “O primeiro sutiã a gente nunca esquece”.Os olhos daquele menino! Quase bati o carro na República do Líbano. Resta dizer que até hoje não sei qual é a marca do sutiã, mas isso não é culpa da propaganda, mas sim de meu desinteresse por aprender...me bastava ver). Aqui, os comerciais, no geral, são de uma bobeira ímpar, a não ser durante o Super Bowl e quando é comercial de comida ou de remédio. E aqui começa meu espanto. Que diferença da primeira vez que morei aqui, quando cantava a torto e a direito o comercial do AlkaSeltzer: ploc, ploc, fizzzz fizzzz..oh what a relief it is!

Agora, temos borboletas, pôr-de-sóis maravilhosos, cachorrinhos lindinhos, tudo para que não se preste atenção nas letrinhas bem pequenas em baixo, com nomes como “coágulo sanguíneo”, “ataque cardíaco”, “derrame”, “convulsões”, reações alérgicas mortais” e “morte”. E vou morrer sem entender a propaganda de uma dessas pílulas para “distúrbios da potência masculina”, que mostra um casal absolutamente maravilhoso, de meia idade, olhando um por de sol também maravilhoso, cada um dentro de uma dessas banheiras tipo antiga, bem no topo de um penhasco, com o aviso em letrinhas microscópicas : “Se sua ereção durar mais do que 4 horas, procure imediatamente um médico”. Jura?

Fora gente maravilhosa, natureza espetacular e animaizinhos graciosos, há outra coisa em comum: uma voz ao fundo, sedutora, ora masculina, ora feminina, lhe dizendo para falar com seu médico a respeito de começar a usar a nova maravilha.

Mas, o truque incrível e insidioso, é que a venda da droga chega bem subliminar, porque na realidade a coisa toda é a respeito do que parece uma aula sobre alguma doença, contando como aquela doença específica (de depressão a distúrbio bipolar, a distúrbio das pernas inquietas, a distúrbios mis da tiróide), tem sido sub-diagnosticada, citando barreiras e estigmas que cercam a coisa.

Aí meu lado italiano começa a querer rodar a baiana, posto que, durante toda minha vida profissional vi e vejo estigma aos montes cercando doenças psiquiatricas, principalmente esquizofrenia, que tem sido usada como explicação sempre que acontece um assassinato em massa, mas que não tem nenhuma celebridade indo à TV para dizer o quanto sofreu com a coisa. Nem tem nenhum comercial falando maravilhas de antipsicóticos em esquizofrenia, embora haja um, do Abilify, anti psicótico potente, mas o comercial é para depressão. E não estou nem falando para distúrbio bipolar com psicose. Pura depressão.

Da Alternet vem a seguinte informação:
“de Joan Lunden e Mike Piazza vendendo Claritin, a Doroty Hamil e Bruce Jenner vendendo Vioxx, as propagandas com celebridades vendendo medicamentos é um sucesso fenomenal. Por isso mesmo, a companhia farmacêutica AbbVie selecionou Sofia Vergara, ganhadora do Emmy, para liderar a campanha para diagnóstico e tratamento do Hipotiroidismo, campanha essa chamada de ‘Siga o Roteiro’, cujo objetivo é ‘educar’pacientes a respeito de levarem a sério o tratamento prescrito pelo médico.”

Claro que hipotiroidismo existe, mas a campanha acima citada capitaliza nas áreas cinzentas desse diagnóstico e na tendência humana de auto diagnóstico, desde que, de médico e de louco, todos nós temos um pouco. Pior, é tão bem feita que planta a sementinha de medo e dúvida: “Distúrbios da tiróide afetam 30 milhões de indivíduos nos USA...e 1 em cada 8 mulheres vai desenvolver a citada condição, durante a vida”. Aí, curiosas feito eu, vão checar a Harvard Health Publications, da Escola de Medicina de Harvard, e descobre que, para essa faculdade (ruins eles não é?) o número de sofredores de tal distúrbio é de, no máximo, 12 milhões.

Não bastasse, lógico que há o web site com informação sobre sintomas e tratamento, histórias de criaturas com o problema, cada um pode compartilhar a própria, e finalmente, um “roteiro” para como conversar com seu médico sobre o assunto. Claro, porque sem a receita médica, não dá para comprar o remédio cujo nome aparece e desaparece todo o tempo, e no tempo que leva para ler uma histórinha, já deu pra decorar também o nome do mesmo, que aliás vem impresso no tal roteiro, que eles deixam bem claro para imprimir, no caso de seu QI ser abaixo de 70, e você esquecer ou bloquear tal nome de sua memória.

Só para terem uma idéia, tal medicação, cujo nome me recuso a escrever, só no ano passado, desde que a Sofia iniciou a campanha, teve um aumento de 25% nas vendas, ganhando a companhia que o produz 153 milhões de dólares nos primeiros 4 meses. Não bastasse, a mesma companhia inventou a "National Academy of Hypothyroidism" (Academia Nacional do Hipotiroidismo), e a primeira coisa que se vê ao clicar no site, é uma senhora com distúrbio do desenvolvimento horizontal (em palavras não politicamente corretas, bem mais larga que longa), em cima de uma balança, com letras enormes perguntado “Seu hipotiroidismo está fazendo com que engorde?” E meu humor torto responde: “Com esse tamanho, sim, desde o nascimento”. Lá se aprende também que o tal pode estar causando stress, depressão e dores crônicas, tudo aquilo que, há 10 ou 15 anos atrás era causado por deficiências hormonais no período da menopausa. E, porque todos adoramos ganhar algo, eis que o site também ensina como se candidatar para receber benefícios de invalidez por hipotiroidismo.

Mas o que leva o Oscar de criatividade, pelo menos em minha opinião, é um que apareceu ano passado, a respeito de um obscuro distúrbio do ritmo circadiano chamado de “TRANSTORNO NÃO 24 HORAS DO DESPERTAR E SONO”, o qual traduzi ao pé da letra por não ter jamais ouvido falar da coisa, vai que em português tem outro nome e se tiver, me informem. Só para ter uma idéia da obscuridade da coisa, na Livraria Nacional de Medicina dos USA, só há 146 citações para o mesmo, enquando para a peste bubônica há 8463. (Como é que eu escrevia artigos antes do Google? O coisinha mais bem feita! Sim, fazendo propaganda do mesmo, há uma coisa chamada “Google Scholar”, que é um fenômeno, permitindo fazer pesquisa sem fim sobre o que der na telha!) Mas voltando, na propaganda do acima citado distúrbio, tem um cego dizendo que a cegueira dele nunca o impediu de fazer nada, mas que agora, depois do tal distúrbio, estava tendo problemas sérissimos.

E o remédio? Mais uma pílula para dormir, que, quimicamente, é prima de outra já existente, que é o Ramelteon, um agonista dos receptores de melatonina. Daí vai-se ao site e descobre-se que os sintomas básicos de tal distúrbio são: Incapacidade de pegar no sono ou de dormir a noite toda, sonolência durante o dia, com consequente queda de produtividade na escola ou no trabalho, problemas nos relacionamentos afetivos, alteração do humor e frustração contínua. Sintomas esses que, todos que passaram por residência médica sem dúvida sofreram, não por insônia, mas por deprivação do sono. Adiciono à lista a perda de namorado, que me aconteceu por dormir no sofá, antes do jantar, folheando os albuns de infância do citado mancebo que sua mãe tão graciosamente havia despejado em cima de mim, após plantão de 48 hs.

No site deles, aprendo que pode dar em qualquer um, mas é mais comum em cegos, além de ter um número de telefone, para falar com um/uma “educador de saúde.”

O site do CDC me informa que “15.000 idosos morrem a cada ano devido a uso de medicação que não precisariam estar tomando, devido a propaganda das mesmas”, e o NY Times informa que, em 2012, a GlaxoSmithKline pagou multa de 3 BILHÕES DE DÓLARES por promover usos não aprovados de seus antidepressivos mais vendidos (Aropax,Wellbutrin), além de não reportar problemas de segurança com sua droga para diabetes (Avandia) CLIQUE AQUI PARA ARTIGO ORIGINAL

Pois é.

Então o que tenho a dizer é, por favor, falem com e escutem seu médico. Não à toa, ele/ela foram a 6 anos de faculdade, uns 3 ou 4 de residência, a depender da especialidade. A meta da propaganda, qualquer uma, é criar novas necessidades para venda de determinado produto, e não para cuidar de nosso bem estar, que é um bem precioso e muito, mas muito frágil.

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