QUANTO TEMPO ME RESTA?
Estava cá fumegando, presa em casa por motivo de tempo inclemente, e escaneando revistas pela net, quando, ao mesmo tempo, dou de cara com o artigo que se segue, e recebo a notícia de que uma amiga ouviu de seu médico que suas chances de sobrevivência não passam de 2%.
Do morno estado de fumegamento por prisão domiciliar, passei a franca erupção vulcânica: por que, em nome de tudo que é mais sagrado, um médico tem que jogar estatísticas como essa, na cara de pacientes? Qual a vantagem?
Não estou aqui pregando mentir ao paciente, mas há mais do que uma maneira de dizer as coisas. E, fora isso, se o paciente realmente confia no médico, não é uma forma de condução à uma profecia auto realizável? Mais ainda, com a quantidade de novidades acontecendo em cachoeira nos últimos tempos, como é possível fazer tal afirmação?
Vai daí que traduzi, ao pé da letra, o artigo que se segue. No final, como de costume, link para o artigo original.
Tão logo terminei de fazer a tomografia, comecei a rever as imagens. O diagnóstico foi imediato: massas enchendo os pulmões e deformando a espinha dorsal. Câncer. Durante meu treinamento em neurocirurgia, tinha revisto centenas de tomografias para colegas médicos, para decidir se uma cirurgia podia oferecer alguma esperança. E escrevia nas papeletas: “Doença metastática extensa – sem chance cirúrgica”, e ia em frente. Mas essa tomografia era diferente. Era a minha.
Sentei com inúmeros pacientes e seus familiares, para discutir prognósticos sombrios: é um dos mais importantes papéis que os médicos têm que desempenhar. É mais fácil quando o paciente tem 94 anos, está nos últimos estágios de demência e apresenta severa hemorragia cerebral. Para pessoas mais jovens, como eu, que tenho 36 anos, com diagnóstico de câncer, não há muitas palavras.
Minhas falas padrão incluem: “É uma maratona, então há necessidade de repouso diário”, e “doenças podem destruir ou fortalecer famílias, assim prestem atenção nas necessidades de cada um, e procurem apoio extra”.
Aprendi algumas regras básicas: seja honesto a respeito do diagnóstico e sempre deixe espaço para a esperança. Seja vago, mas preciso: “dias a semanas”, “semanas a alguns meses”, “meses a alguns anos”, “alguns anos para uma década ou mais”. Nunca citamos estatísticas, e usualmente pedimos para não googlar números relacionados à sobrevivência, pois achamos que o paciente médio não tem as nuances todas para entendimento das estatísticas.
As pessoas reagem de formas diferentes ao ouvir: “Procedimento X tem 70% de chances de sobrevivência” e “Procedimento Y tem 30% de chances de morte”. Colocado dessa maneira, as pessoas vão escolher sempre procedimento X, mesmo que os números sejam exatamente iguais.
Quando um amigo muito próximo desenvolveu câncer pancreático, tornei-me o perito médico para um grupo de sofisticadíssimos estatísticos, e mesmo assim os convenci a não checar estatísticas, dizendo que as curvas de 5 anos de sobrevivência estão desatualizadas há, pelo menos, 5 anos. De alguma maneira, achei que os números de per si são secos, e que a experiência diária do médico com doenças é totalmente necessária, para dar contexto. Fato é que sempre sinto o impulso para manter alguma esperança.
As curvas de sobrevivência, chamadas curvas de Kaplan-Meier, são as que usamos para medir progresso em tratamento de câncer, e traçam o número de pacientes que sobrevivem, por período de tempo.
Em algumas doenças, parecem com um avião, descendo devagar; para outras, feito bombas despencando. Médicos pensam muito a respeito dessas curvas, sua forma e o que significam. Na pesquisa de câncer cerebral, por exemplo, embora os números para sobrevivência média não tenham mudado muito, há um rabinho da curva que vem aumentando progressivamente, indicando que, alguns pacientes estão vivendo mais tempo. O problema é que não dá para saber onde um paciente individual se localiza na curva. É impossível, até mesmo irresponsável, ser mais preciso do que acurado.
Depois disso tudo, seria lógico pensar que, quando minha oncologista sentou para conversar comigo, eu não iria pedir logo de cara, informações estatísticas de sobrevivência. Mas, agora que atravessei a linha de médico para paciente, tive a mesma necessidade de números que a maioria dos pacientes.
Esperava que ela me visse como alguém que, não só entende estatísticas, como também a realidade médica das doenças, que ela pudesse me dar certezas, direto e reto, eu ia entender. E ela recusou: “Não, absolutamente, não”. Ela sabia muito bem que eu podia, e fiz, buscar todas as pesquisas na área. Mas, câncer de pulmão não era minha especialidade, e ela era uma especialista de fama mundial. A cada consulta, a luta livre começava, e ela sempre evitou ficar encurralada por qualquer tipo de números.
Agora, ao invés de ficar imaginando por que alguns pacientes persistem em perguntar estatísticas, comecei a querer saber porque os médicos se recusam a dizer as mesmas estatísticas, quando têm tanto conhecimento e experiência. Quando vi minha tomografia pela primeira vez, pensei que só teria alguns meses de vida. A tomo era feia. Eu me sentia mal. Perdi 15 Kg, tinha dores insuportáveis nas costas, e cada dia sentia mais fadiga. Meus testes mostraram níveis proteicos severamente baixos e contagem sanguínea idem, tudo consistente com a sobrecarga em meu corpo, que estava falhando na tarefa básica de sustentar a si mesmo.
Desconfiei, durante alguns meses, que estava com câncer. Havia visto montes de pacientes jovens com câncer, assim, não foi total surpresa. Os próximos passos eram claros: prepare-se para morrer. Chore. Diga para sua esposa que ela deve se casar de novo, e refinancie a hipoteca da casa. Escreva cartas, a muito atrasadas, para os amigos queridos. Sim, havia muitas coisas que tinha pensado fazer em vida, mas, às vezes, isso acontece, e nada poderia ser mais óbvio para uma pessoa que passa os dias tratando de traumas e câncer cerebrais.
Mas, na minha primeira consulta com a oncologista, ela mencionou a possibilidade de, algum dia, eu poder voltar a trabalhar. Ora essa, pensei, já não tinha virado um fantasma? Não, de jeito nenhum. Então tá, quanto tempo me resta? Silêncio.
Claro que ela não podia impedir minhas leituras. Debruçado sobre estudos, fiquei tentando encontrar um que me dissesse que meus números estavam no lado ascendente da curva. A maior parte deles me informava que pacientes com câncer de pulmão, em 70 a 80% dos casos, morrem em 2 anos. Não davam muito espaço para esperança. Mas, aí, olha só, a maioria dos pacientes era de idosos que haviam sido fumantes. Onde estavam os estudos a respeito de um neurocirurgião de 36 anos? Vai que juventude e saúde contam? Ou vai que minha doença tivesse sido descoberta tarde demais, tivesse se espalhado demais e eu estava em pior situação que os fumantes com mais de 65 anos?
Amigos e familiares providenciaram histórias do tipo “o amigo da amiga da mãe do tio do parceiro de tênis de meu barbeiro tem um filho com o mesmo tipo de câncer e já sobrevive há mais de 10 anos”. Inicialmente fiquei imaginando se todas as histórias eram da mesma pessoa, conectadas através dos proverbiais 6 graus. Eu as ignorei, achando que eram ilusões sem fundamento. Apesar disso, eventualmente, algumas delas passaram pelas rachaduras de meu estudado realismo.
E aí, minha saúde começou a melhorar, graças a uma pílula que tem como alvo uma mutação genética específica ligada ao meu câncer. Comecei a andar sem bengala e a dizer coisas do tipo: “Bom, provavelmente não serei tão sortudo como para viver uma década, mas vai que seja possível”. Uma pequena gota de esperança.
De certa forma, porém, a certeza da morte era mais fácil do que essa vida de incertezas. Não é verdade que os que estão no purgatório preferem ir para o inferno, e pronto, encerrar o assunto? Que deveria fazer? Me devotar à minha esposa, meus pais, meus irmãos, minha adorável sobrinha? Escrever o livro que sempre quis escrever? Ou será que deveria voltar a negociar meus possíveis contratos de trabalho?
O caminho adiante pareceria óbvio, se soubesse quantos meses ou anos ainda tenho. Diga-me 3 meses, e vou passar o tempo todo com minha família. Diga-me um ano, e tenho um plano, que é escrever o livro. Me dê 10 anos, e eu estou de volta a tratar doenças. A verdade óbvia que “se vive um dia de cada vez”, não ajudava em nada. O que tenho que fazer com aquele dia? Minha oncologista só dizia: “Não posso lhe dizer quanto tempo. Você tem que descobrir o que é mais importante para você”.
Comecei a perceber que o ter que encarar minha própria mortalidade, de certa forma havia mudado tudo e nada ao mesmo tempo. Antes do câncer, sabia que algum dia ia morrer, mas não sabia quando. Mas agora sabia disso agudamente. O problema não era exatamente científico. O fato da morte é inquietante. E, por outro lado, não há outra forma de se viver.
A razão pela qual médicos não dão prognósticos específicos, não é simplesmente porque não podem. Claro que, se as expectativas de um paciente estão muito além de qualquer probabilidade, do tipo alguém que espera viver 130 anos, ou que umas manchas na pele são sinal de morte eminente, os médicos tem o dever de trazer essas expectativas para o reino das possibilidades razoáveis.
Mas, a variedade do que é razoavelmente possível é tão grande! Tendo como base as terapias de hoje, posso morrer em 2 anos, ou posso alcançar a marca dos 10. Se adicionar a isso a incerteza quanto o que vai aparecer de tratamentos novos em 2 ou 3 anos, a equação se torna totalmente diferente.
Quando damos de cara com a nossa mortalidade, a ciência pode dar só um grama de certeza: sim, você vai morrer. Mas, o que queremos é um quilo de certeza, e essa não está em oferta.
O que os pacientes querem não é o conhecimento científico que os médicos escondem, mas sim uma autenticação existencial, a qual, cada um tem que descobrir por si mesmo. Ir fundo em estatísticas é o mesmo que querer matar a sede com água salgada. A angústia do morrer não encontra remédio em probabilidades.
Lembro-me do momento em que minha inquietação esmagadora cedeu. Sete palavras de Samuel Beckett, um autor que sequer tinha lido muito, aprendidas anos atrás na faculdade: “Eu não consigo continuar. Eu vou continuar.” Dei um passo à frente, repetindo e repetindo a frase: “Eu não consigo continuar. Eu vou continuar”. E aí, em algum momento, descobri que tinha continuado.
Estou há quase 8 meses de meu diagnóstico. Minhas forças substancialmente recuperadas. Em tratamento, o câncer está regredindo. Gradualmente, voltei ao trabalho. Estou espanando manuscritos científicos antigos. Estou escrevendo mais, vendo mais, sentindo mais. Cada manhã, às 5:30, o alarme toca, e meu corpo morto acorda com minha esposa a meu lado, e eu penso de novo, comigo mesmo: “Eu não consigo continuar. Eu vou continuar.” E no minuto seguinte, estou com minha roupa cirúrgica, indo para o centro cirúrgico, vivinho da silva: “Eu vou continuar.”
Paul Kalanithi é chefe de residência em neurocirurgia na Stanford University.
How long have I got left?
Do morno estado de fumegamento por prisão domiciliar, passei a franca erupção vulcânica: por que, em nome de tudo que é mais sagrado, um médico tem que jogar estatísticas como essa, na cara de pacientes? Qual a vantagem?
Não estou aqui pregando mentir ao paciente, mas há mais do que uma maneira de dizer as coisas. E, fora isso, se o paciente realmente confia no médico, não é uma forma de condução à uma profecia auto realizável? Mais ainda, com a quantidade de novidades acontecendo em cachoeira nos últimos tempos, como é possível fazer tal afirmação?
Vai daí que traduzi, ao pé da letra, o artigo que se segue. No final, como de costume, link para o artigo original.
Tão logo terminei de fazer a tomografia, comecei a rever as imagens. O diagnóstico foi imediato: massas enchendo os pulmões e deformando a espinha dorsal. Câncer. Durante meu treinamento em neurocirurgia, tinha revisto centenas de tomografias para colegas médicos, para decidir se uma cirurgia podia oferecer alguma esperança. E escrevia nas papeletas: “Doença metastática extensa – sem chance cirúrgica”, e ia em frente. Mas essa tomografia era diferente. Era a minha.
Sentei com inúmeros pacientes e seus familiares, para discutir prognósticos sombrios: é um dos mais importantes papéis que os médicos têm que desempenhar. É mais fácil quando o paciente tem 94 anos, está nos últimos estágios de demência e apresenta severa hemorragia cerebral. Para pessoas mais jovens, como eu, que tenho 36 anos, com diagnóstico de câncer, não há muitas palavras.
Minhas falas padrão incluem: “É uma maratona, então há necessidade de repouso diário”, e “doenças podem destruir ou fortalecer famílias, assim prestem atenção nas necessidades de cada um, e procurem apoio extra”.
Aprendi algumas regras básicas: seja honesto a respeito do diagnóstico e sempre deixe espaço para a esperança. Seja vago, mas preciso: “dias a semanas”, “semanas a alguns meses”, “meses a alguns anos”, “alguns anos para uma década ou mais”. Nunca citamos estatísticas, e usualmente pedimos para não googlar números relacionados à sobrevivência, pois achamos que o paciente médio não tem as nuances todas para entendimento das estatísticas.
As pessoas reagem de formas diferentes ao ouvir: “Procedimento X tem 70% de chances de sobrevivência” e “Procedimento Y tem 30% de chances de morte”. Colocado dessa maneira, as pessoas vão escolher sempre procedimento X, mesmo que os números sejam exatamente iguais.
Quando um amigo muito próximo desenvolveu câncer pancreático, tornei-me o perito médico para um grupo de sofisticadíssimos estatísticos, e mesmo assim os convenci a não checar estatísticas, dizendo que as curvas de 5 anos de sobrevivência estão desatualizadas há, pelo menos, 5 anos. De alguma maneira, achei que os números de per si são secos, e que a experiência diária do médico com doenças é totalmente necessária, para dar contexto. Fato é que sempre sinto o impulso para manter alguma esperança.
As curvas de sobrevivência, chamadas curvas de Kaplan-Meier, são as que usamos para medir progresso em tratamento de câncer, e traçam o número de pacientes que sobrevivem, por período de tempo.
Em algumas doenças, parecem com um avião, descendo devagar; para outras, feito bombas despencando. Médicos pensam muito a respeito dessas curvas, sua forma e o que significam. Na pesquisa de câncer cerebral, por exemplo, embora os números para sobrevivência média não tenham mudado muito, há um rabinho da curva que vem aumentando progressivamente, indicando que, alguns pacientes estão vivendo mais tempo. O problema é que não dá para saber onde um paciente individual se localiza na curva. É impossível, até mesmo irresponsável, ser mais preciso do que acurado.
Depois disso tudo, seria lógico pensar que, quando minha oncologista sentou para conversar comigo, eu não iria pedir logo de cara, informações estatísticas de sobrevivência. Mas, agora que atravessei a linha de médico para paciente, tive a mesma necessidade de números que a maioria dos pacientes.
Esperava que ela me visse como alguém que, não só entende estatísticas, como também a realidade médica das doenças, que ela pudesse me dar certezas, direto e reto, eu ia entender. E ela recusou: “Não, absolutamente, não”. Ela sabia muito bem que eu podia, e fiz, buscar todas as pesquisas na área. Mas, câncer de pulmão não era minha especialidade, e ela era uma especialista de fama mundial. A cada consulta, a luta livre começava, e ela sempre evitou ficar encurralada por qualquer tipo de números.
Agora, ao invés de ficar imaginando por que alguns pacientes persistem em perguntar estatísticas, comecei a querer saber porque os médicos se recusam a dizer as mesmas estatísticas, quando têm tanto conhecimento e experiência. Quando vi minha tomografia pela primeira vez, pensei que só teria alguns meses de vida. A tomo era feia. Eu me sentia mal. Perdi 15 Kg, tinha dores insuportáveis nas costas, e cada dia sentia mais fadiga. Meus testes mostraram níveis proteicos severamente baixos e contagem sanguínea idem, tudo consistente com a sobrecarga em meu corpo, que estava falhando na tarefa básica de sustentar a si mesmo.
Desconfiei, durante alguns meses, que estava com câncer. Havia visto montes de pacientes jovens com câncer, assim, não foi total surpresa. Os próximos passos eram claros: prepare-se para morrer. Chore. Diga para sua esposa que ela deve se casar de novo, e refinancie a hipoteca da casa. Escreva cartas, a muito atrasadas, para os amigos queridos. Sim, havia muitas coisas que tinha pensado fazer em vida, mas, às vezes, isso acontece, e nada poderia ser mais óbvio para uma pessoa que passa os dias tratando de traumas e câncer cerebrais.
Mas, na minha primeira consulta com a oncologista, ela mencionou a possibilidade de, algum dia, eu poder voltar a trabalhar. Ora essa, pensei, já não tinha virado um fantasma? Não, de jeito nenhum. Então tá, quanto tempo me resta? Silêncio.
Claro que ela não podia impedir minhas leituras. Debruçado sobre estudos, fiquei tentando encontrar um que me dissesse que meus números estavam no lado ascendente da curva. A maior parte deles me informava que pacientes com câncer de pulmão, em 70 a 80% dos casos, morrem em 2 anos. Não davam muito espaço para esperança. Mas, aí, olha só, a maioria dos pacientes era de idosos que haviam sido fumantes. Onde estavam os estudos a respeito de um neurocirurgião de 36 anos? Vai que juventude e saúde contam? Ou vai que minha doença tivesse sido descoberta tarde demais, tivesse se espalhado demais e eu estava em pior situação que os fumantes com mais de 65 anos?
Amigos e familiares providenciaram histórias do tipo “o amigo da amiga da mãe do tio do parceiro de tênis de meu barbeiro tem um filho com o mesmo tipo de câncer e já sobrevive há mais de 10 anos”. Inicialmente fiquei imaginando se todas as histórias eram da mesma pessoa, conectadas através dos proverbiais 6 graus. Eu as ignorei, achando que eram ilusões sem fundamento. Apesar disso, eventualmente, algumas delas passaram pelas rachaduras de meu estudado realismo.
E aí, minha saúde começou a melhorar, graças a uma pílula que tem como alvo uma mutação genética específica ligada ao meu câncer. Comecei a andar sem bengala e a dizer coisas do tipo: “Bom, provavelmente não serei tão sortudo como para viver uma década, mas vai que seja possível”. Uma pequena gota de esperança.
De certa forma, porém, a certeza da morte era mais fácil do que essa vida de incertezas. Não é verdade que os que estão no purgatório preferem ir para o inferno, e pronto, encerrar o assunto? Que deveria fazer? Me devotar à minha esposa, meus pais, meus irmãos, minha adorável sobrinha? Escrever o livro que sempre quis escrever? Ou será que deveria voltar a negociar meus possíveis contratos de trabalho?
O caminho adiante pareceria óbvio, se soubesse quantos meses ou anos ainda tenho. Diga-me 3 meses, e vou passar o tempo todo com minha família. Diga-me um ano, e tenho um plano, que é escrever o livro. Me dê 10 anos, e eu estou de volta a tratar doenças. A verdade óbvia que “se vive um dia de cada vez”, não ajudava em nada. O que tenho que fazer com aquele dia? Minha oncologista só dizia: “Não posso lhe dizer quanto tempo. Você tem que descobrir o que é mais importante para você”.
Comecei a perceber que o ter que encarar minha própria mortalidade, de certa forma havia mudado tudo e nada ao mesmo tempo. Antes do câncer, sabia que algum dia ia morrer, mas não sabia quando. Mas agora sabia disso agudamente. O problema não era exatamente científico. O fato da morte é inquietante. E, por outro lado, não há outra forma de se viver.
A razão pela qual médicos não dão prognósticos específicos, não é simplesmente porque não podem. Claro que, se as expectativas de um paciente estão muito além de qualquer probabilidade, do tipo alguém que espera viver 130 anos, ou que umas manchas na pele são sinal de morte eminente, os médicos tem o dever de trazer essas expectativas para o reino das possibilidades razoáveis.
Mas, a variedade do que é razoavelmente possível é tão grande! Tendo como base as terapias de hoje, posso morrer em 2 anos, ou posso alcançar a marca dos 10. Se adicionar a isso a incerteza quanto o que vai aparecer de tratamentos novos em 2 ou 3 anos, a equação se torna totalmente diferente.
Quando damos de cara com a nossa mortalidade, a ciência pode dar só um grama de certeza: sim, você vai morrer. Mas, o que queremos é um quilo de certeza, e essa não está em oferta.
O que os pacientes querem não é o conhecimento científico que os médicos escondem, mas sim uma autenticação existencial, a qual, cada um tem que descobrir por si mesmo. Ir fundo em estatísticas é o mesmo que querer matar a sede com água salgada. A angústia do morrer não encontra remédio em probabilidades.
Lembro-me do momento em que minha inquietação esmagadora cedeu. Sete palavras de Samuel Beckett, um autor que sequer tinha lido muito, aprendidas anos atrás na faculdade: “Eu não consigo continuar. Eu vou continuar.” Dei um passo à frente, repetindo e repetindo a frase: “Eu não consigo continuar. Eu vou continuar”. E aí, em algum momento, descobri que tinha continuado.
Estou há quase 8 meses de meu diagnóstico. Minhas forças substancialmente recuperadas. Em tratamento, o câncer está regredindo. Gradualmente, voltei ao trabalho. Estou espanando manuscritos científicos antigos. Estou escrevendo mais, vendo mais, sentindo mais. Cada manhã, às 5:30, o alarme toca, e meu corpo morto acorda com minha esposa a meu lado, e eu penso de novo, comigo mesmo: “Eu não consigo continuar. Eu vou continuar.” E no minuto seguinte, estou com minha roupa cirúrgica, indo para o centro cirúrgico, vivinho da silva: “Eu vou continuar.”
Paul Kalanithi é chefe de residência em neurocirurgia na Stanford University.
How long have I got left?
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