MUITO DO QUE “SABEMOS”A RESPEITO DE TRATAMENTOS E DAS PRÓPRIAS DEPENDÊNCIAS, ESTÁ ERRADO.

Drogas são assustadoras. Nos arrepiamos só de ouvir as palavras “cocaina”ou “heroina”, não só pela associação com crime e efeitos colaterais desastrosos, mas também pela noção de que essas substâncias destroem a identidade de quem as usa. Basta uma vez, e pronto, estamos danados, o que parece ser confirmado por experimentos em animais. Quero crer que todos estão cansados de ver a fotodo ratinho auto injetando cocaina ou heroina. É o carro chefe dos slides da NIDA (Instituto Nacional do Abuso de Drogas, aqui nos EUA),e eu mesma já usei à exaustão.

Muitos estudos mostraram ratos e macacos, deixando de comer e beber em prol de puxar uma alavanquinha que lhes dá doses das substâncias acima citadas.
Com a configuração experimental adequada, alguns ratos vão se auto-administrar a droga até morrerem. À primeira vista,parece que,simplesmente,os ratos de laboratórios perderam o contrôle para as drogas.

E a partir disso, montou-se toda a crença, incluindo na comunidade científica, a respeito das drogas roubarem nossa força de vontade e nossa possibilidade de escolha. E aí entrava meu problema com o trabalhar na área. Embora conhecesse, e acreditasse nas provas que os ratinhos obviamente mostravam, também tinha cá comigo que somos um pouco diferentes de ratos. E, boca grande que sou, não é verdade que mantive essa opinião só para mim. Discuti e briguei muitas vêzes
contra a idéia predominante que,drogadependência é uma tentativa de suicidio.

Acreditava,e acredito,que, muito pelo contrário, é uma forma totalmente ineficiente, de tentar sobreviver quando não há competência para lidar com as frustrações do dia a dia. No meio do caminho, também entrei em contacto com o trabalho de Stanton Peele, outro rebelde do status quo, um gênio da area, até hoje referência mundial no campo das dependências, o que muito reforçou minha briga.

Pois bem, há cerca de 3 semanas, pesquisando uma área completamente sem relação com dependências, na realidade era metodologia de pesquisa, coisa na qual devo ter alguma espécie de bloqueio mental, que um dia entenderei, eis que dou de cara com um trabalho de 30 anos atrás, do qual nunca, jamais tinha ouvido falar. E olha que sou curiosa, que vou atrás, que procuro olhar para além do campo costumeiro. Nada. Nunca vi mesmo. E lá estava a evidência desaparecida,e muito pior, a constatação, para minha total infelicidade, de como, até mesmo a neurociência pode ser distorcida para ceder às ansiedades populares.

E lá vai a bomba: uma série de estudos, no final da década de 70,feitos pelo psicólogo
Bruce Alexander,da Universidade Simon Fraser, na Colúmbia Britânica, no Canadá, os quais ficaram conhecidos como “Parque dos Ratos”,levantou a hipótese de que,a preferência dos tais ratos pela morfina/heroina/cocaina, ao invés da água ou comida, tinha muito a ver com as condições de habitação dos mesmos.

Vai daí que ele construiu caixas de 8.8 metros quadrados (200 vêzes maiores que as caixas padrão),nas quais não só decorou as paredes,como colocou rodas de corridas e áreas de nidificação. Nas tais caixas, colocou colônias inteiras de ratos, de ambos os sexos, e com comida e água suficiente para todos.

Pois bem, resulta que ratos são criaturas espertas e sociáveis e que viver numa caixa e sózinho, para eles é uma forma de deprivação sensorial(aliás o mesmo para nós, humanos), Assim,o “Parque dos Ratos” era o que neurocientistas chamam de “ambiente enriquecido” ou “ambiente não deprivado”.

E a grande descoberta do Alexandre foi que, os ratos solitários nas caixinhas usavam 20 vezes mais morfina do que os ratos do “Parque”. Mais, os habitantes do Parque, podiam ser induzidos a beber mais morfina, se esta fosse misturada com açúcar, e um experimento contôle demonstrou que isso acontecia
porque os ratos gostavam do açúcar, e não porque o açúcar ajudava a encobrir o gosto amargo da heroina por tempo suficiente, até que eles se tornassem dependentes. Quando foi introduzido Naloxone (droga que inibe os efeitos da heroína) à mistura de heroína com açúcar, a consumpção não diminuiu. Muito pelo contrário, aumentou, sugerindo que os ratinhos estavam ativamente tentando evitar os efeitos da heroína, mas passariam por eles se, com isso, pudessem conseguir o açúcar.

Os resultados desse estudo são catastróficos para a idéia simplista de que, uma dose da droga, e pimba!Seu cérebro é completamente reprogramado e você está dependente. O que o estudo demonstrou foi que, se ao invéz de botar um rato sózinho numa caixinha, sem absolutamente nada para fazer, colocar o grupo num ambiente cheio de coisas a serem exploradas, os ratinhos não ligam para a heroina e vão fazer coisas muito mais interessantes, como brincar com os amiguinhos, explorar o ambiente e fazer sexo quando der vontade.

Mais suporte às condições de vida foi dado por outra série de experimentos, nos quais ratos criados nas caixas comuns (pequenas e só um rato em cada uma), foram forçados a consumir heroina por 57 dias seguidos, e, se há algo que pode reprogramar cérebros, essa é certamente a melhor forma. O que aconteceu foi que, quando esses ratos foram mudados para o Parque, eles deixaram a heroína de lado para participar das outras coisas, com o restante do grupo, mesmo
apresentando alguns sinais de abstinência da droga.

E agora a explicação do porquê nunca soube: esses estudos nunca foram citados na literatura da área de dependências, e foram descontinuados pelo fato de não conseguiram atrair fundos.

De qualquer maneira, como experiência pessoal, tanto com meu própio Projeto Phoenix, quanto pelo conhecer outros projetos, principalmente o de San Patrignano, na Itália, posso garantir que tratamento, real, de longa duração, se dá quando o indivíduo dependente é inserido num ambiente que promove seu desenvolvimento humano e social. Tenho enorme orgulho de ter visto pessoas que chegavam ao Projeto, sem qualquer idéia de vida, ou como cuidar de si, terem se tornado membros produtivos da sociedade onde vivem. Vi como familias, de baixissimo poder econômico, se juntaram para criar uma biblioteca dentro do Projeto, e grupos de apoio na comunidade. Vi pessoas que mal sabiam ler ou escrever, montarem e desenvolverem um jornal, o “Cuca Fria”. Vi ex- pacientes
retornarem para prestar serviços voluntários aos que ainda continuavam no Projeto. Montamos uma padaria, dentro do Hospital, com venda dos produtos e formação de Cadernetas de Poupança para os que saissem tivessem como começar a se manter.

Em suma, tive o privilégio de ver pessoas criarem milagres. E aí, foi fechado, mas essa é outra história,que acabo de perceber, extremamente parecida com a do Parque.

Abaixo vão alguns links para uma revista em quadrinhos que foi feita sobre o experiment do “Parque dos Ratos”, e de San Patrignano. Salute!

/RAT PARK QUADRINHOS

 SAN PATRIGNANO

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