EM DEFESA DA LERDEZA

Estava aqui tendo um ataque de saudades de Carminha, minha secretária por tanto tempo que não precisa ser contado, e do mundo que costumava conhecer.
O ataque deveu-se a um momento no qual me dei conta que estava perfeitamente enlouquecida, pois, domingo de manhã, teóricamente dia universal, pelo menos para mim, de folga de qualquer ligação trabalho/foco/organização, me vi, com um pé, fazendo cosquinhas em minha cachorrinha, o outro fazendo força numa especie de pedal, que faz parte da fisioterapia, uma mão segurando o celular e a outra digitando, mandando e mail, textando, organizando artigos, selecionando rotas alternativas na estrada, fazendo lista de supermercado.
E só me dei conta da insanidade, porque súbitamente a cachorra ganiu, o celular saiu voando de minha mão, e dei um chute no pedal.
Que qui é isso, companheira?

Sentada no chão, acalmando a ganinte enfurecida canina, comecei a pensar sobre o que, sub repticiamente, estava me acontecendo. Primeiro, que detesto celular. Perdi inúmeros, passei com o carro em cima de um, outro foi assassinado por um pick up ao saltar do bolso de minha camisa, esqueço a coisa dentro de bolsas e gavetas, volta e meia tenho que pedir a alguém que me chame para descobrir onde foi parar. Pensava que a coisa existia com duas grandes finalidades: chamar assistência em caso de acidente de carro e tirar fotos, coisa na qual tenho melhorado bem. Aguento com bom humor as piadinhas de colegas mais versados tecnologicamente a respeito do meu citado, que já está sendo chamado de “antiguidade”, posto que é um I4, e já estamos no 6, escuto, com meio ouvido, os discursos sobre quantas possibilidades estou perdendo, e vou indo muito feliz com os computadores e Ipads da vida, onde, não só enxergo o que estou fazendo, como também consigo digitar sem ter que apagar 3 em 4 letras quando estou mandando msgs. Ou pelo menos pensava eu.

De repente, lembrei-me com a emoção de amante abandonada, como nunca me preocupei em aprender a mandar um fax, pois Carminha sabia, assim como sabia todos os telefones e aniversários de familiares, amigos e pacientes, bastando-me assinar os cartões. Nem com datas de contas a pagar, pois todas as segundas feiras, antes de começar os atendimentos, lá estava ela com a lista semanal de todas as necessidades. Para escrever artigos ou livros? Simples: pesquisa- organiza-escreve-passa para a Carminha-que passa para a Lucy da APM, e acabou meu problema. Só precisava me lembrar de, em caso de atraso no hospital, pedir para a secretária do hospital onde estivesse, para ligar para meu consultório para avisá-la e ela se encarregava de reorganizar todos, pois sempre detestei a coisa de paciente ter que ficar esperando na sala de espera. Se tem hora marcada, é meu dever honrar citada marcação.

Destarte, em tendo terminado o dia de trabalho, livre, leve e solta estava para fazer o que bem me desse na telha, e descubro que, embora na época tivesse muito mais longas horas de trabalho do que tenho agora, tinha muito mais tempo disponível. Aqui, tive que aprender desde a mandar fax, aprendizado totalmente inútil, que, tão logo aprendi, desapareceu, como a tirar xerox com máquinas muito mais espertas do que eu, a editar e corrigir meus escritos, a organizar no Google todos os aniversários e acontecimentos, o que, tendo família e amigos espalhados nos 4 cantos do mundo, não é fácil, e ser informada, depois que comecei este blog em português, que estava com atraso de 2 revisões ortográficas, fato evidenciado com minha ideia insana, mas que me divertiu às pencas, de auto publicar, pela Amazon, meu primeiro livro totalmente fora de minha área, corrigido por santa Teresa e seu filho Henrique, que me informaram que não mais poderiam ver uma couve-flor na frente, de tantas que tiveram que hifenar.

E me lembrei do espanto, quando aprendi, numa visita à NASA, que a porcaria do celular que tinha na bolsa, era milhares de vezes mais potente que o computador que colocou o homem na lua ou o mais avançado dos computadores da IBM há 30 anos atrás. Fora a vergonha de pensar que a única coisa que estava fazendo com tal maravilha, era tirar fotos de flores e cogumelos esquisitos aqui do Texas. E da minha desconfiança a respeito dos assim chamados “multitaskers”, esses seres incríveis que fazem mil coisas diferentes ao mesmo tempo, e como, de repente, essa era a coisa certa a ser.

Artigos aos milhares foram escritos, o pessoal de RH subiu aos céus pela falta de foco, pois nos diziam que o Curriculum (e aqui se usa uma coisa esquisita, chamada de Resume), devia ser escrito de formas a chamar a atenção do profissional da área em menos de 15 segundos, que era o tempo que a criatura tinha para gastar com cada um. Acho que minha desconfiança também tinha um pouco a ver com inveja, posto que não sei multitaskear, preciso focar, e muito, no que estou fazendo, correndo o risco de, ao cantar e cortar tomates, provocar sérias lesões digitais. Então, o que foi que me aconteceu?

Aconteceu que “engoli” a ideia, muito americana, de “quanto mais, melhor.” Pensem comigo: todos os dias e todas as horas, somos assaltados com fatos, pseudo fatos, besteiras crassas, barulho, tudo passando como se fosse “informação”, e tentar separar o joio do trigo, isto é, o que precisamos saber do que há que se ignorar, é exaustivo. Há uns 30 anos, quando queria ir a um Congresso, informava Carminha, que ligava para o agente de viagens, que arrumava tudo. Ou quando entrava numa loja, informava o atendente do que queria, e ele/ela achavam o item no ato. Agora, fazemos as reservas, rodamos as lojas a procurar o que precisamos e as secretárias estão ocupadas com as coisas do departamento, e não com as necessidades dos humanos que compõem o citado. Isso sem contar as coisas fora do trabalho, casa, marido, filhos, pais, amigos, passatempos, cachorro, periquito e papagaio.

Assim, o celular tornou-se uma espécie de canivete suíço, Bombril com mil e uma utilidade, que incluem, mas não estão limitadas a browser da net, calculadora, agenda, e-mail, joguinhos, calendário, gravador, homem do tempo, GPS, Tweeter, Face book e lanterna para achar as baterias das lanternas quando há apagões. E usamos a coisinha o tempo todo, como parte da mania do século 21, de enfiar tudo o que fazemos em todo em qualquer momento em que estamos, teoricamente, sem fazer nada. É na fila do supermercado (Não, isso não faço mesmo, adoro conversar com o povo e/ou checar todas as revistas de fofocas de celebridades que lá estão, em toda sua glória), jantando em restaurantes (outra coisa que me irrita, o celular, não o jantar), na sala de espera do médico/dentista ou qualquer outra espera (faço com gosto), nos 3 minutos que leva para baixar um arquivo grande (lá vou eu checar Face book, com a desculpa esfarrapada de que, em lá tendo uma página, tenho que estar atualizada...em que, não sei bem), enfim, deu para ter uma ideia. Tornou-se um perigo a ida a um supermercado, que a criatura, manejando um carrinho mais do que cheio, está também digitando textos no seu I qualquer coisa.

E é ai que mora o perigo, pois, apesar de que pensamos que estamos realmente fazendo um montão de coisas ao mesmo tempo, isto não é nada além de ilusão diabólica.

Earl Miller, neurocientista do MIT e um dos maiores especialistas mundiais em atenção dividida explica: “Nosso cérebro não está aparelhado para executar múltiplas tarefas ao mesmo tempo. Quando pensamos que o estamos fazendo, na realidade estamos saltando de uma tarefa a outra, muito rapidamente, e, cada vez que o fazemos, há um custo cognitivo a pagar. Portanto, não estamos realmente mantendo um monte de bolas no ar como um malabarista, mas sim atuando como crianças confusas, mudando constantemente de direção, sem saber como chegar e ignorando o que está bem na nossa frente, preocupados com tudo o que não conseguimos ver. Assim, mesmo achando que estamos fazendo um montão de coisas, se estamos multi tarefando também estamos nos tornando muito menos eficientes.” (A tradução é minha. A fala dele é bem mais elegante).

O multitarefar aumenta a produção do hormônio do stress (cortisol) e do hormônio da resposta de luta ou fuga (adrenalina), o que hiperestimula nosso cérebro e causa um embaralhamento no processo de pensamento (os japoneses chamam de “nevoeiro mental"e acho a frase perfeita), o que, por sua vez cria uma espécie de dependência dopaminérgica no nosso sistema de recompensa, fazendo com que necessitemos mais e mais de estímulos externos, exatamente como ocorre na dependência de qualquer droga. Para piorar tudo, porque o cérebro quando dá de avacalhar, o faz em tamanho gigantesco, o córtex pré-frontal adora novidades, o que significa que a atenção pode ser facilmente sequestrada por algo novo - os proverbiais objetos brilhantes/piscantes que usamos para atrair crianças e cachorros. A ironia, para aqueles que estão tentando se concentrar em meio a atividades que competem com a atenção, é clara: a região do cérebro na qual mais precisamos confiar para permanecer na tarefa é facilmente distraivel. Atender o telefone, procurar algo na internet, verificar o nosso e-mail, enviar um SMS, etc., etc., e etc., cada uma dessas coisa é uma possibilidade de novidade, e os centros de recompensa cerebrais ganham uma inundação de opióides endógenos (e é por isso mesmo que nos sentimos tão bem e continuamos a repetir o comportamento, como qualquer droga dependente o faz), em detrimento do permanecer na tarefa inicial. É mais ou menos como se sente alguém, depois de uma semana em dieta muito restritiva, de repente entrar na Cristallo...e, ao invés de colher a grande recompensa que vem do esforço sustentado e concentrado, de dieta e exercícios, colhe a recompensa imediata, e cheia de açúcar dos docinhos piscantes. (Caso alguém prefira qualquer outra loja de doces, sintam-se à vontade para alterar. É que sou fã inconteste da Cristallo, desde criancinha, e conheço bem o “rush” opiáceo que tenho, sempre que entro em qualquer uma das lojas.)

Ainda me espanto quando, em reuniões de equipe (e aqui, para ser honesta, devo informar que detesto essas reuniões, pois acho que um bando de gente, usualmente inteligente, vira criança ranheta, cada um puxando sardinha para seu lado, raramente resultando algo que preste), as pessoas respondem ao celular dizendo “desculpa, não posso falar agora, estou em reunião’. Para que responder? Deixa o chamante deixar recado! Mas entendo que as expectativas mudaram muito, desde os tempos que os telefones ficavam na mesa do escritório ou em algum lugar da casa, e o povo entendia que, às vezes, a pessoa que era chamada podia não estar perto do telefone, ou ter saído, ou estar ocupada com outras coisas, e então, respeitosamente deixava-se recado para que nos chamassem de volta à melhor conveniência daquele que havia sido chamado. Como agora o celular passou a ser apêndice de orelha, e tem gente que vai até ao banheiro com ele, a expectativa é que todos estejam, todo o tempo, disponíveis para nossas necessidades.

Glenn Wilson, professor de Psicologia no Gresham College, em Londres diz que, só a oportunidade de poder desempenhar múltiplas tarefas, já é prejudicial ao desempenho cognitivo, e chama a isso de “infomania”. Sua pesquisa demonstrou que o estar numa situação na qual se está tentando concentrar em uma tarefa, e se é avisado que há um e-mail novo na caixa, pode reduzir em 10 pontos nosso quociente de eficácia. Compara a coisa ao uso de maconha, onde, embora alguns atribuam muitos benefícios à droga, incluindo uma maior criatividade, redução da dor e do estresse, é bem documentado que o seu ingrediente principal, o canabinol, interfere profundamente com a memória e com a capacidade de concentração. Wilson mostrou que as perdas cognitivas de multitarefa são maiores do que as perdas cognitivas do fumar maconha.

Russ Poldrack, neurocientista de Stanford, descobriu que, quando desempenhamos múltiplas tarefas, a informação ligada ao aprendizado, vai parar na parte errada do cérebro. Se alguém está estudando e assistindo TV, por exemplo, a informação da matéria estudada vai parar no corpo estriado, região especializada no armazenamento de novas habilidades e procedimentos, e não de fatos e ideias. Sem a distração da TV, a informação vai para o hipocampo, onde é organizada e categorizada, de formas a facilitar sua recuperação quando necessário.

E o já citado Miller, completa: “Não podemos desempenhar bem várias tarefas ao mesmo tempo. Quando dizemos que podemos, estamos nos iludindo, e acontece que o cérebro é bom demais nesse negócio de ilusão.”

Daniel J. Levitin, em seu livro “The Organized Mind: Thinking Straight in the Age of Information Overload” (A mente organizada: pensando direito na era da sobrecarga de informação – tradução minha, ao pé da letra, pois não conheço o título em português), fala dos custos metabólicos dessa sobrecarga, dizendo: “Pedir ao cérebro que mude de uma atividade a outra, faz com que o córtex pré frontal e o corpo estriado queimem glicose oxigenada, o mesmo combustível que é necessário para permanecer em uma tarefa. E a mudança rápida e contínua que fazemos ao “multitarefar”, faz com que queimemos o combustível tão rapidamente que nos sentimos exaustos e desorientados, mesmo depois de curto período de tempo. Literalmente, esgotamos os nutrientes de nosso cérebro, o que compromete nosso desempenho cognitivo e físico. Entre outras coisas, a alternância de tarefas repetidas leva à ansiedade, o que aumenta os níveis de cortisol, (hormônio do estresse) no cérebro, que por sua vez pode levar a um comportamento agressivo e impulsivo. Por outro lado, o permanecer na tarefa é controlado pelos corpos cingulado anterior e estriado, que ativam o córtex pré frontal (ou modo executivo central), o qual faz com que permaneçamos numa só tarefa até termina-la, reduzindo assim a necessidade do uso de glucose pelo cérebro. Para piorar a situação, multitarefar requer tomada de decisão: Respondo esta mensagem ou ignoro? Como respondo isso? Como posso apresentar este e-mail? Continuo o que estou fazendo ou dou um tempo? Acontece que tomada de decisão também gasta recursos neurais e pequenas decisões gastam tanta energia quanto as grandes. Uma das primeiras coisas que perdemos é controle de impulsos. Esta espiral rapidamente leva a um estado de exaustão no qual, depois tomar muitas decisões insignificantes, podemos acabar por tomar decisões realmente ruins a respeito de algo importante. Por que alguém iria querer adicionar mais peso ao já enorme peso diário de processamento de informações, tentando multitarefar?”

E é por essas e outras que, depois de ter ficado espalhada no tapete, com minha cachorrinha em cima do peito a me fazer discurso sobre a diferença entre o pedal e a barriga dela, me encher de saudade de Carminha e ter superado minha inveja dos multitarefadores, sou tomada por felicidade grande por ainda me dar o luxo de mandar cartões de natal e aniversários, daqueles que se escreve o endereço à mão e se coloca selo, ou então de usar meu tempo para, pelo menos, mandar um cartão eletrônico. Ou de fazer filminhos para os acontecimentos importantes na vida dos que chamo de “minhas crianças”. Ou de comer melancia pelo puro gosto de cuspir os caroços e observar as trajetórias. Sou uma antiguidade sortuda.

E se o preço a pagar são umas gozações cá e lá...tá barato!

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