NÃO SÃO SUAS VIDAS PASSADAS, SÃO AS VIDAS DE SEUS ANTEPASSADOS

“O que é uma ideia? É uma imagem que se pinta em meu cérebro”. Voltaire

Uma das coisas que mais gostava, quando no Shand’s Teaching Hospital, era os finais das Grandes Conferências Semanais, nos quais nosso chefe máximo, que usava um avental branco tão largo, que o mesmo o aplaudia quando andava, nos estimulava a soltar a imaginação a respeitos das possibilidades da neurologia. Até meu mau humor de ter acordado às 5 e meia da matina com o raio do rádio relógio berrando “dabliugegegegeeeeeeeeeee” (que ficava na sala e não no meu criado mudo, o que me obrigava a sair da cama para desligar o tormento), passava. Nesses momentos mágicos, éramos livres de soltar qualquer coisa que nos viesse à mente, sobre qualquer assunto. Numa época na qual o Projeto Genoma nem estava em consideração, computadores, se os havia, ainda eram coisas de cientistas da NASA, donughts eram considerados alimento primordial antes de conferências matutinas, e a genética que conhecia ainda era só a Mendeliana, o já citado chefe se derramava em teorias sobre mutações do DNA em neurônios. Em minha modesta opinião, era viajar na maionese, mas que viagem!

Pulamos uns 10 anos, e eis que surgem teorias e terapias de vidas passadas, coisas com as quais me diverti com gosto. Amigas queridas, terapeutas e não, embarcaram com fé na novidade. Procurei ser o menos ácida possível a respeito do assunto, não por acreditar, mas por respeito às já citadas, e afinal de contas, que mal pode fazer? A fé remove montanhas, segundo dizem. Nunca vi acontecer, mas, como disse Sheakspeare, “há mais coisas entre o céu e a terra do que sabe nossa vã filosofia”. E assim, passei anos escutando vidas incríveis vividas em outros tempos, onde pavor de fogo era explicado por ter ido à fogueira na inquisição, amores e desamores provinham de passados distantes, tudo tinha explicação e porquê. E, apesar de ser fã de carteirinha de Chico Xavier, decididamente não consigo entender como é que a humanidade continua crescendo em velocidade assustadora, se tem tanta alminha indo e voltando, e quando algo ruim me acontece, juro de pés juntos que noutra encarnação devo ter sido a irmã malvada da Lucrécia Bórgia, para ter que pagar tanto pecado.

Admito, nessa área não tenho qualquer compromisso com a racionalidade. Meu outro lado é racional/científico até a medula dos ossos. E foi esse lado que se levantou e aplaudiu de pé (esse lado e o resto de mim mesma, assustando minha cachorrinha, que placidamente repousava debaixo de minha escrivaninha) meu antigo chefe, ao ler o artigo de Dias e Ressler na revista Nature (CLIQUE AQUI).
O aplauso se deveu à visão de futuro da criatura, que acreditava que, pelo menos metade de nossos sonhos, pesadelos, delírios (em casos de pacientes psicóticos), nossas tendências a gostar de uma coisa ao invés de outra, pânicos e ansiedades, são causados por pedacinhos de material genético proveniente de nossos antepassados, que alteram o próprio DNA de nossos neurônios. Baseava-se ele em estudos que mostravam como o stress modifica o DNA de algumas células cerebrais. E agora, tantos anos depois, estão começando os estudos para demonstrar o que foi lá atrás sonhado.

Segundo o artigo, alguns “medos” podem ser herdados por gerações, coisas como ansiedade e dependências. Como é que acontece? Convencionalmente, sabe-se que, a única forma de transmitir informação biológica é através de sequências genéticas que contenham DNA (ácido desoxirribonucleico). Mutações aleatórias no DNA, quando benéficas, fazem com que os organismos se adaptem mais facilmente a mudanças, e, normalmente, este processo ocorre lentamente ao longo de muitas gerações. Por favor, não esqueçamos que Darwin NUNCA disse da sobrevivência do mais forte, mas sim do que mais rapidamente se adapta às condições mutantes do meio ambiente.

Pois bem, mais de 100 anos depois da Teoria da Evolução, alguns estudos tem demonstrado que fatores ambientais podem influenciar a biologia de forma mais rápida, através de modificações “epigenéticas” (1), as quais alteram a “expressão” (3) do gene, mas não sua sequência. Por exemplo, crianças que foram concebidas durante terrível período de escassez e fome na Holanda, em 1940, durante a segunda guerra mundial, tiveram risco muito aumentado de diabetes, problemas cardíacos e mais uma série de problemas, possivelmente por causa de alterações epigenéticas dos genes envolvidos nessas doenças.

Kerry Ressler, neurobiólogo e psiquiatra da Emory University, em Atlanta, começou a se interessar por herança epigenética depois de trabalhar com populações carentes na cidade, onde ciclos de dependência a drogas, doenças mentais e outros problemas parecem recorrentes em gerações. Devo concordar com ele, pois um dos meus maiores espantos quando trabalhei com dependentes em zonas rurais do Texas, foi conhecer famílias com 3 e 4 gerações de dependentes de metanfetaminas. Levem em consideração que, nessas famílias, as meninas estão tendo bebes tão cedo aos 12, 13 e 14 anos, de forma que uma bisavó pode ser tão nova (40 anos), se viver até lá. E ver isto em país de assim chamado primeiro mundo, como são os USA, é mais do que chocante. Provavelmente foi o que também chocou o Ressler, que considerou que, estudar as bases biológicas desses efeitos em humanos, ia ser por demais complicado, de maneira que, junto com seu colega Brian Dias, decidiu fazer o estudo com camundongos de laboratório, os quais haviam sido treinados para terem medo do cheiro de acetofenona, substância química cujo cheiro parece uma mistura de cerejas e amêndoas. Para instilar o medo, espalharam o cheiro ao redor de uma câmara onde estavam os ratos, que recebiam um pequeno choque elétrico ao sentir o já citado cheiro. Assim, aprenderam a associar o cheiro com dor, de forma a tremerem quando sentiam o cheiro, mesmo quando não levavam nenhum choque. E agora, a descoberta: essa reação foi passada a seus filhotes, que nunca tomaram nenhum choque, mas que começavam a tremer na presença do cheiro. Não vou aqui reportar todo o estudo com quais receptores do cérebro recebem o que, posto que, até para amantes de neurônios a leitura é de uma aridez desconcertante, o que me leva a pensar porque não é permitido nenhum humorzinho em artigos científicos, coisa que, em minha opinião, estimularia assaz o estudo, ao invés de afastar. Mas, divago. O ponto é que o estudo dividiu os cientistas. Uns com cara de “Nossa, que fantástico!”, outros com jeito de “Duvido-dê-o-dó”, que é a maravilha da ciência, até mesmo porque, a associação de cheiro com dor, continua um mistério de como realmente acontece. O fato é que este estudo foi chamado, pela maioria da comunidade, como “o estudo mais rigoroso e convincente, publicado até o momento, demonstrando os efeitos da aquisição epigenética trangeneracional.”

Esse palavrório todo se traduz no fato de que a comunidade cientifica está em profundo pânico, ao pensar que nossas células germinais, isto é, as que nos originam, possam ser tão plásticas e dinâmicas em resposta ao ambiente. Os autores do estudo acham que nós, humanos, herdamos alterações epigenéticas que influenciam nosso comportamento, só não sabem ainda como identificar. De minha parte, tenho certeza, nada científico, puramente de observação. Pois não estou fazendo exatamente o que meu nonno fazia comigo, me mostrando as constelações e assim me ensinando, de forma deliciosa, toda a mitologia grega e a base do comportamento de nós, ocidentais? É por acaso espanto, que amo Freud com paixão? Tudo bem, não vou dizer que recebi fatores epigenéticos de meu chefe da neuro na Florida, mas, com certeza, o que eu já tinha me permitiu curtir com fé os ensinamentos. E viajando na maionese vou eu, só imaginando quantas fantásticas vidas tenho dentro de mim, ganhas na mais pura loteria genética.

Muito obrigada a meus predecessores. Será que esse pavor horrendo que tenho de cobra veio diretamente de Eva ou será consequência do fato que uma se enrolou na minha perna, quando, recém chegada a Taubaté, no sítio, saía a fazer explorações noturnas? Mistério, mistério. E como não poderia deixar de ser, Ney Matogrosso invade minha cabeça a cantar “Pavão misterioso...pássaro formoso...tudo é mistério, nesse seu voar ...”Seja esse voar para o profundo de nosso ser, ou do país.


1-Epigenética é o estudo das reações e fatores que influenciam o desenvolvimento e manutenção das reações químicas de um genoma.
2-Genoma é um conjunto completo de DNA de um organismo, incluindo todos os seus genes. Cada genoma contém todas as informações necessárias para construir e manter esse organismo. Em nós, humanos, uma cópia de todo o genoma (mais do que 3 bilhões de pares de bases de DNA) está contida em todas as células que possuem um núcleo. E se isso, de per si, não o faz se maravilhar, não sei o que o faz.
3-Expressão do gene é o processo pelo qual a informação provinda de um gene é usada na síntese de um produto funcional desse mesmo gene. É um processo que acontece em todas as formas de vida conhecidas (vírus, bactérias, organismo uni e multicelulares), para gerar o maquinário macromolecular do que chamamos vida.

“A coisa mais incompreensível do universo é que ele é compreensível
”. Albert Einstein

Comentários

  1. Maravilhoso!!!!!
    Os novos conhecimentos e a forma como vc escreve Patrizia! E que sorte ter tido um Mestre destes!!!!!
    E eu, de ter uma amiga assim!!!
    Obrigadíssima!! (acho que já o tinha lido uma vez, mas hoje ele faz um sentido diferente e mais amplo)

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