VIOLÊNCIA E DOENÇAS MENTAIS

Os doentes mentais são violentos? São mais violentos que o resto da população? São um risco para a segurança pública?

Essas questões têm permeado o debate, tanto entre profissionais da área quanto entre público leigo, em torno da relação entre violência e doença mental. Para o post de hoje, vou usar o termo "violência" apenas como atos de violência física contra outrem, já que esse extremamente resumido significado é o que mais gera medo entre o público em geral, e é um dos maiores determinantes da discriminação e estigma social sofridos pelos doentes mentais.

Também usarei o epíteto "doença mental" somente para distúrbios mentais não relacionados a uso de substâncias psicoativas, tais como esquizofrenia e depressão, pois distúrbios mentais relacionados a uso de substâncias vão ser identificados e discutidos separadamente, como fatores de risco.

Em geral, e graças ao trabalho incessante de Hollywood e da mídia histérica, a associação, pelo menos na cabeça do público leigo, entre doença mental e violência é amplamente exagerada, quando, na realidade, os doentes mentais têm muito maior chance de serem vítimas do que perpetradores da mesma. Também é moda a crítica new age aos psiquiatras, que são descritos como seres ligeiramente idiotizados e alienados, muito mais preocupados em "imobilizar quimicamente" os pacientes, do que entender o que realmente está acontecendo. Claro, imbecis existem em qualquer profissão. Há padres pedófilos, advogados desonestos, mães que matam os próprios filhos, portanto com certeza há também psiquiatras insanos. O que ninguém fala é que há cada vez mais instrumentos de avaliação de risco de violência, e cada vez mais fazendo parte do arsenal de competência dos profissionais de saúde mental.

Agora, tudo isso só pode ser usado dentro de um ambiente clínico. Ninguém pode sair pelo mundo aplicando o MMPI (Inventário Multifásico de Personalidade de Minesota), em minha opinião o mais acurado teste de personalidade já inventado. Não, pelo menos aqui nos USA, é contra a lei a aplicação do supracitado, a não ser em avaliações clínicas, em ambiente estruturado. Em empresas aqui usam demais o Briggs Myers, divertidinho, que mede as preferências psicológicas, dizendo se somos intro ou extrovertidos, pensadores ou sensitivos e nada a respeito de traços de caráter. Já completei o BM umas 4 vezes, em momentos diferentes, e me descobri 4 pessoas totalmente diferentes, embora até onde saiba, não padeço de qualquer distúrbio de personalidade múltipla e nem acredito que exista. Informo que fiz o teste pela internet, pois há inúmeros sites oferecendo-o gratuitamente.

Muitos psiquiatras, principalmente os que trabalham em Prontos Socorros ou serviços de atendimento de emergência, reportaram casos de violência em pacientes psiquiátricos. No Canadá, onde a violência entre a população em geral é muito menor do que no vizinho de baixo, os USA velho de guerra, e a maioria dos psiquiatras é treinada no manejo e tratamento de comportamento violento, 50% deles reportaram o terem sido atacados por um paciente, pelo menos uma vez. Isso absolutamente não é demonstrativo de violência maior entre doentes mentais, mas apenas uma consequência do fato que, por lei, só vai para tratamento de emergência quem pratica um ato muito violento contra si ou outrem.

Toda a pesquisa feita a respeito de antecedentes dos atos violentos (em ambiente hospitalar), demonstrou que a grande maioria dos incidentes teve antecedentes sócio estruturais tipo: clima emocional na enfermaria, falta de liderança clínica, superlotação, restrições na ala, falta de atividades, ou transições entre atividade mal estruturadas.

Apesar de todos os estudos e pesquisas, o que conta mesmo é a "percepção" do público a um evento, percepção essa modelada cada vez mais pela TV, e agora internet, que continuam vendendo a ideia de violência aleatória, sem sentido e imprevisível, o que, naturalmente, é igual à doença mental. Na realidade, as pessoas se sentem mais seguras em saber que alguém foi esfaqueado e morto durante um assalto, do que esfaqueado e morto por um psicótico.

Numa série de pesquisas cobrindo vários fatos reais na Alemanha, Angermeyer and Matschinger (1) demonstraram que o desejo do público de manter um distanciamento social dos mentalmente doentes aumenta marcadamente após cada ataque que tenha sido muito enfatizado pela mídia, e nunca volta para valores anteriores ao sucedido. Pior, esses incidentes correspondem a um aumento na percepção pública da ideia que o doente mental é perigoso e imprevisível.

Já aqui nos EUA, Pescosolido e cols (7) entrevistaram amostras de público americano em diferentes estados, para avaliar pontos de vista a respeito de doenças mentais e seus tratamentos. Os entrevistados avaliaram os seguintes grupos como muito prováveis de perpetrar algum ato violento:

Drogadependentes: 87,3%
Dependentes de Álcool: 70,9%
Esquizofrênicos: 60,9%
Depressivos Severos: 33,3%
Confusos no geral: 16,8% (adorei essa classificação, e há dias nos quais sinto que a mim se aplica perfeitamente)

Embora a probabilidade de violência tenha sido universalmente superestimada, os entrevistados classificaram corretamente os toxicodependentes como grupos de maior risco. Da mesma forma, superestimaram o risco de violência entre esquizofrênicos e depressivos, mas os identificaram corretamente entre os grupos de menor risco.

Como estamos vivendo a era onde "percepções" são mais validadas do que fatos, essa percepção do doente mental como ser predisposto à violência, além de ser base para todo o estigma e discriminação, também fornece justificativas para o "bullying" e outras vitimizações do mesmo, fatos estes que passam completamente despercebidos da mídia e, por conseguinte, do público leigo.

Pela graça do Senhor dos Desgraçados, a comunidade científica está muito mais interessada em checar se os mentalmente enfermos cometem mais ou menos atos de violência que os assim chamados normais, do que ficar soltando diagnósticos televisivos, de forma que o que até agora temos em termos de pesquisa na área é:

O Estudo de Avaliação de Risco de Violência da Fundação MacArthur (6), considerado como a mais sofisticada tentativa de clarificar o problema, trouxe os seguintes dados:

1 - A prevalência de violência entre aqueles com um grave distúrbio mental, que NÃO abusam de substâncias, é indistinguível da de "sujeitos controles", que também NÃO usam drogas.
2 - Pessoas com esquizofrenia têm a menor taxa de violência (14,8%), quando comparados com distúrbio bipolar (22%) ou depressão maior (28,5).
3 - Abuso de substâncias é um fator de risco enorme para violência, sendo que, quando no contexto de uma situação onde o drogado tem algum distúrbio mental e recusa-se a tomar seus medicamentos (ou sequer foi diagnosticado), o risco aumenta exponencialmente.
4 - No geral, incidentes violentos entre pessoas com transtornos mentais graves foram desencadeados pelas condições de sua vida social, pela natureza e qualidade de suas interações sociais mais próximas:
membros da família ou amigos: 87% (violência tipicamente ocorre na casa), igual a não doentes mentais
completos estranhos: 10,7%, bem baixo se comparados com não doentes mentais (22.2%)

As famílias de doentes mentais, onde foi encontrada a maior parte dos incidentes violentos, caracterizaram-se como tendo relacionamentos de ameaça mútua, hostilidade e dependência financeira, abuso de substâncias simultâneamente, e quando os serviços ambulatoriais de saúde mental eram utilizados com pouca frequência.

Um estudo de Programática Epidemiológica (4) demonstrou que a violência numa comunidade poderia ser diminuída em 10% se fossem eliminados os principais transtornos mentais, mas a queda seria de 30% se as dependências e abusos de substâncias fossem eliminados.

Quer me parecer que está claro que distúrbios mentais não são as causas necessárias ou suficientes para violência, cujo maior determinante continua sendo socioeconômico e sociodemográfico (jovem do sexo masculino e de baixo status sócio econômico); claro está também que o público superestima a relação entre violência e doenças mentais e o risco pessoal de sofrer violência daí decorrente.

O pior é que ABUSO DE SUBSTÂNCIAS parece ser o maior determinante de violência, com ou sem doença mental.

Aqueles que usam e abusam de drogas são os principais contribuintes para a violência na comunidade, representando 7 em cada 10 crimes cometidos.

Também acho que todo mundo se concentra muito mais nos problemas com gente que tem distúrbios mentais do que com as interações sociais que levam à violência, de forma que muito pouco sabemos a respeito da natureza dessas relações e dos determinantes dessa mesma violência, perdendo nossas oportunidades de pensar e fazer prevenção primária.

Mesmo assim, todas as pesquisas mais recentes têm demonstrado que a melhor estratégia de prevenção de violência é a identificação precoce e o tratamento de problemas de abuso de substâncias, assim como maior atenção ao diagnóstico e tratamento das mesmas, tanto entre os que sofrem de distúrbios mentais, quanto na população em geral.

Tratei de pacientes esquizofrênicos por muito tempo, e sofri uma única agressão feia, e, infelizmente, a culpa foi minha. Fui chamada para ver uma paciente que estava agitada no hospital. Não conhecia a paciente, já que minha área era a ala masculina, mas, como não tinha mais ninguém lá, fui e abri a porta do quarto da mesma, de supetão, sem aviso prévio. Fui brindada com um lançamento de cama, e, por sorte, porque era nova, magrinha e rápida, me enfiei num canto em posição fetal. Os pés da cama bateram nas paredes e comigo não aconteceu nada, mas um dos enfermeiros teve um braço quebrado.

De outra vez, lição aprendida, conversei por cerca de uma hora com um paciente esquizofrênico e a senhora sua mãe que queria que ele me matasse. Até puxei a cadeira para que a senhora se sentasse, e a convenci que não merecia ser morta. Detalhe, ela estava falecida há 10 anos.

Para compensar, trabalhando com dependentes no glorioso estado do Texas/USA, a maioria dependente de metanfetaminas, tive os vidros de meu carro estilhaçados, pneus retalhados e outras cositas mais, comportamento que acabou quando passei a ir ao trabalho com minha cachorra Lucky, um great pyrenee de 80 Kg, da qual a maioria tornou-se amiga para a vida toda.
Abaixo vai a bibliografia usada neste artigo e dados estatísticos.

1 - Angermeyer MC. Matschinger H., Violent attacks on public figures by persons suffering from psychiatric disorders. Their effect on the social distance towards the mentally ill. Eur Arch Psychiatry Clin Neurosci. 1995;245:159–164
2 - Cascardi M. Mueser KT. DeGiralomo J, et al. Physical aggression against psychiatric inpatients by family members and partners. Psychiatr Serv. 1996;47:531–533.
3 - Hiday VA. The social context of mental illness and violence. J Hlth Soc Behav. 1995;36:122–137.
4 - Link BG. Stueve A. Psychotic symptoms and the violent/illegal behavior of mental patients compared to community controls. In: Monahan J, Steadman HJ, editors. Violence and mental disorder: developments in risk assessment. Chicago: Chicago University Press; 1994. pp. 137–159.
5 - Marzuk P. Violence, crime, and mental illness. How strong a link? Arch Gen Psychiatry. 1996;53:481–486
6 - Monahan, J., Steadman, H., Silver, E., Appelbaum, P., Robbins, P., Mulvey, E., Roth, L., Grisso, T., & Banks, S. (2001). Rethinking Risk Assessment: The MacArthur Study of Mental Disorder and Violence. New York: Oxford University Press.
7 - Noffsinger SG. Resnick PJ. Violence and mental illness. Curr Opin Psychiatry. 1999;12:683–687.
8 - Pescosolido BA. Monahan J. Link BG, et al. The public's view of the competence, dangerousness, and need for legal coercion of persons with mental health problems. Am J Public Hlth. 1999;89:1339–1345.
9 - Swanson JW. Mental disorder, substance abuse, and community violence: an epidemiologic approach. In: Monahan J, Steadman HJ, editors. Violence and mental disorder: developments in risk assessment. Chicago: University of Chicago Press; 1994. pp. 101–136.
10 - Swartz MS. Swanson JW. Hiday VA, et al. Violence and severe mental illness: the effects of substance abuse and nonadherence to medication. Am J Psychiatry. 1998;155:226–231.
11 - Wessely S. Violence and psychosis. In: Thompson C, Cowen P, editors. Violence. Basic and clinical science. Oxford: Butterworth/ Heinemann; 1993. pp. 119–134.

FATOS A RESPEITO DE DOENÇA MENTAL E VIOLÊNCIA:

1. A grande maioria das pessoas com doenças mentais não é violenta. (Institute of Medicine, 2006, American Psychiatric Association, 1994).
2. O público está totalmente mal informado a respeito da relação entre doença mental e violência. (Pescosolido, et al., 1996, Pescosolido et al., 1999).
3. Crenças inexatas sobre a doença mental e violência levam ao estigma e discriminação generalizadas (DHHS, 1999, Corrigan, et al., 2002).
"O estigma faz com que as pessoas evitem viver, conviver, trabalhar, alugar ou contratar pessoas com transtornos mentais - especialmente distúrbios graves, como esquizofrenia. Isso leva a baixa autoestima, desesperança, isolamento, impedindo ainda a busca de cuidados necessários. Respondendo ao estigma, as pessoas com problemas mentais internalizam as atitudes públicas e tornam-se constrangidas e envergonhadas, fazendo com que escondam os sintomas e não procurem tratamento". (New Freedom Commission, 2003).
4. A ligação entre doença mental e violência é promovida pela indústria do entretenimento e pela mídia.
"Personagens (em horário nobre da televisão) retratados como tendo uma doença mental são descritos como o mais perigoso de todos os grupos demográficos: 60% deles envolvidos em crimes ou violência." (Mental Health American, 1999).
"A grande maioria das notícias sobre doentes mentais, concentra-se nas características negativas (por exemplo, imprevisibilidade e insociabilidade). Notavelmente ausente são histórias positivas de recuperação, mesmo com a mais grave das doenças mentais". (Wahl, et al., 2002).

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